A Terra devastada.
Este lugar não chove quase nunca! É tão raro uma chuvinha nesta região que, quando acontece, tudo fica em uma alegria que contagia a todos, se bem que por aqui quase tudo acaba sempre em festa, mas é certo que um pouco de chuva em um lugar que quase nunca chove realmente tende a ser sempre um grande acontecimento. Na maioria das vezes, tem sempre céu aberto com muito sol, não falta água, pois ela brota do chão em demasia. Um dia assim, repleto de nuvens carregadas, vira sempre o assunto do dia no Ajuntamento e, além do mais, neste dia em que está frio e com muito vento, tudo fica mesmo às avessas. Na semana anterior, uma pessoa desavisada poderia pensar como sendo a semana determinante de uma história humana recente. Uma outra pessoa, com outra visão, poderia demonstrar alguma noção da realidade diante do que estava se apresentando, pois relatos diversos indicavam que grandes catástrofes ainda estão acontecendo e poderiam ser seguidas de outras catástrofes ainda maiores que estão por vir, como uma comprovação premonitória que não passa de achismos, tudo estranho diante de pessoas incrédulas, e assim, segundo uma catástrofe atrás da outra, em vários lugares, espalhadas pelo mundo, quase que simultâneas e intermitentes. Sem nenhum trabalho de prevenção, a surpresa frente à nova realidade causa comoções inúteis, pois não é possível desviar depois do tiro dado. A estação do momento é a primavera, agora com mais agitações no clima do que em outros tempos, e o planeta continua inquieto depois de grandes explosões que ninguém sabe ao certo dizer o que aconteceu, nada bate com os dados históricos do clima. Na região norte, tradicionalmente quente e seco para o período do ano, pessoas passando fome diante das cheias, das tempestades e das fortes ventanias, enquanto que no Sul, onde tudo também está em desacordo com o histórico registrado nos livros, pessoas passando por muita seca e muita fome diante de um sol fortíssimo e inexorável. Os animais morrem no pasto seco num canto do mundo, enquanto que em outros extremos do planeta, bichos morrem afogados diante das enchentes.
Enquanto isso, Russo apenas dorme – como sempre, muito ocupado com os próprios pensamentos. Adormecido em si, restou apenas a memória de uma aula qualquer do colégio, aula que jamais fora concluída. Enquanto as pessoas do Ajuntamento sempre tentam entender como as coisas aconteciam num passado recente, Russo continua vivendo em seu mundo de sonhos e pesadelos, onde tudo parece tão distante e ao mesmo tempo tão recente, como se estivesse próximo, em que todos perderam a noção do tempo.
Os sonhos de grandeza.
Segundo ouviu de sua mãe, Russo havia nascido em período muito conturbado; os dias continuaram terríveis por longa data até que certa calmaria resolveu se apresentar sem avisos. Pensando algo de si mesmo como sendo o símbolo de alguma coisa muito maior que a própria figura física de homem, muito maior que o espaço físico que o próprio corpo poderia ocupar, maior também em esperança enquanto indivíduo, inacreditavelmente maior que a própria esperança de uma civilização inteira, quem sabe?! De uma crença sempre descabida de que haveria de ser ele – Russo – o Salvador do Ajuntamento, quem sabe o salvador de todas as pessoas dos Ajuntamentos de todos os cantos do planeta? Russo é mais que um nome, é a representação falida e decrépita de um simples ser enquanto acredita que ainda permanece vivo, porém hoje ninguém sabe, nem mesmo ele pode imaginar, mas o tempo é sempre incerto. Salvador do quê? De quem? Para quê?
Os pesadelos de Russo.
Russo pensa, enquanto ouve a própria história contada por alguém distante, intocável, invisível, seu imaginário flutuando pelo mundo que não mais existe, agora o mundo é um outro mundo qualquer, sem referente, apenas outro. Com o corpo a caminhar distante da própria psique, a loucura nem sempre chega em silêncio. Enquanto ele ouve e pensa algo de si mesmo, talvez seja ele o próprio Salvador. “Ainda que em fase de crescimento?”, justificaria, depois de adulto. Por ter pouco mais de dez anos de idade, por ser apenas um garoto, e apenas por isso mesmo, submerso nos próprios pensamentos desde muito cedo, sem uma razão de ser, sufocando-se em silêncio agudo enquanto nenhuma resposta aponta para caminho algum.
Haveria Russo de ser mais um louco desvairado, acreditando ser na Terra o filho único do Deus vivo e todo poderoso? Ser ele mesmo o messias egocêntrico, com o poder “divino” de salvar a tudo e a todos, exceto o poder de salvar a si mesmo?
“Não há de haver; danação… nem tão pouco… salvação”, pensaria Russo depois de adulto. Para ele, o resumo de tudo é que, para o homem comum, é sempre muito difícil pensar em si mesmo como sendo algo que não ultrapasse um simples intercalar de sucessões de vida e de morte, de morte e vida.
Até que, após meses de sofrimento devido às intempéries naturais, as coisas começaram a melhorar no Ajuntamento, a mãe-natureza resolveu dar uma trégua; assim, tudo começou a apontar para o retorno a uma frágil ideia de normalidade, Russo tentando encontrar uma maneira de unir seu corpo, sua alma e seu pensamento em meio aos destroços da Terra.
Quanto à ideia de que poderia mesmo haver um messias que teria nascido justamente no momento do fim do mundo – ao menos da parte dele – Russo – enquanto indivíduo, precisa sempre acreditar em algo grandioso a respeito da sua própria pessoa.
Tudo fica momentaneamente em hibernação diante das eternas dúvidas, um estado suspenso, uma trégua vital entre o bem e o mal num só corpo? A natureza, sempre despreocupada com as coisas dos homens, afinal, que diferença poderiam fazer para um planeta inteiro se os problemas existenciais de uma coisa tão humana continuariam a existir? A solidão e a loucura de um simples homem percebem apenas a ele mesmo.