Desde muito pequeno, minha mãe lia para mim um texto de um autor desconhecido, eu demorei muito tempo para entender do que se tratava o assunto. Por muito tempo, pouco me incomodava pensar se havia ou não um sentido lógico no texto e por que ela fazia aquilo. Eu mesmo não saberia dizer a partir de que momento tudo aquilo havia começado e se de fato havia um princípio das coisas, como minha mãe acreditava existir. Nós, da turma dos espertos, com toda uma humanidade selvagem tentando parecer outra coisa, sempre de maneira enrustida, cheia de afetação, “bondade” e fúria, como qualquer coisa desvairada com o mínimo de humanidade comum em todos os tempos do homem na Terra, todos nós continuaríamos a possuir muitas dificuldades de assimilação de diversos tipos de ideias durante toda uma existência. Comprometida a percepção e a compreensão de nós mesmos como uma dessas coisas mais difíceis de praticar e de entender os motivos da nossa existência. Seria esse tema de fato importante, senão o principal? É essa coisa de que poderia sim, um ser humano conhecer a si mesmo sem enlouquecer, como o possível grande ponto de virada da própria vida?!
Se de fato jamais existiu um princípio, como algo divino, transcendental, mitológico – e daí?! Uma ideia aceitável como a de um primeiro toque de “Minerva” dado por alguém ou por alguma coisa? Um ponto inicial, como em um passe de mágica, e a humanidade apenas surgindo na Terra como uma bênção dos Deuses. Nada mais que uma necessidade incompreensível de obter uma resposta para tudo o que for possível, mesmo sendo uma resposta inventada por nós mesmos, uma necessidade maior do que qualquer coisa anterior a qualquer razão possível, a imaginação disfarçada de intelectualidade, a imaginação e a necessidade de um sentido à frente e acima da capacidade de compreensão científica.
Tenho comigo a certeza de que minha mãe jamais compreendera a exata noção do real significado do conteúdo do texto que vou mostrar com detalhes mais adiante, tampouco da sua verdadeira importância nos tempos mais antigos, tempos anteriores até mesmo ao momento da criação do Ajuntamento, uma necessidade já haveria de estar lá antes mesmo da própria existência humana; o nascimento, antes da própria concepção, essa coisa de difícil explicação “Con-cep-ção”.
Todos os dias, antes de dormir ou assim que eu acordava, sempre com mais ênfase ao nascer do sol do que ao cair da noite, lá estava ela, minha mãe, sentada ao meu lado com seus braços curtos e fortes em contraponto às suas pernas, nem tão longas nem tão curtas, porém, muito finas. Minha mãe era a única mulher de todo o Ajuntamento a ter pernas finas, e ela jamais teve consciência disso, mas isso não fazia mesmo nenhuma diferença. Acredito que ela nunca teve consciência de coisa alguma. No “Ajuntamento” inteiro não havia nenhuma ideia de valor, de qualidade, tampouco de nenhum defeito que pudesse ser atribuído a qualquer pessoa, a vida corria por avenidas largas e tranquilas, por rios repletos de vida corrente, de natureza difícil; é certo, mas a vida era tudo o que cada pessoa de fato poderia possuir. Porém, de possibilidades abundantes, possibilidades boas e ruins, mas abundantes. Minha mãe ficava todos os dias aguardando pacientemente o meu despertar, como se por ali permanecesse a noite inteira, onisciente, como uma deusa da tranquilidade e da sabedoria a me proteger, era assim que eu percebia aquilo tudo. Muitas vezes eu já estava acordado e ansioso pelo momento em que ela, com toda sua delicadeza silenciosa, estaria por chegar a passos lentos e firmes, sentando-se na banqueta ao lado da minha cama e me chamando pelo nome com voz aveludada e tênue. Na sequência, com um leve toque em meu ombro, repetia meu nome aos sussurros como em um sonho muito distante de tão pesado e profundamente bom. Sua voz soava quase como um cantochão harmonioso, um ritual que jamais esquecerei, mesmo depois que a música ou qualquer outro tipo de arte tenha morrido. Mesmo depois de muitos anos da morte de todas as manifestações artísticas, meu coração ainda bate forte ao se recordar de cada quadro que vi, de cada música que escutei, de cada filme que assisti, de cada verso que um dia meus olhos fitaram como se fossem notas musicais escritas em uma partitura cerebral.
Trecho inicial do romance “Quimerologia”.